segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

GRANDE EDGAR - CRÔNICA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO


                                                    GRANDE EDGAR


                                                (Lúís Fernando Veríssimo)


Já deve Ter acontecido com você.


_Não está lembrando de mim?


Você não está se lembrando dele.  Procura, freneticamente, em todas fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra.  E não há tempo para procurar no arquivo desativado.  Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta.  Lembra ou não lembra?


Neste ponto, você tem uma escolha.  Há três caminhos há seguir.


Um, curto, grosso e sincero.


_Não.


Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso.  O não seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta.  Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro.  Pelo menos entre pessoas educadas.  Você deveria ter vergonha.  Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria.  Passe bem.  Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.


_Não me diga.  Você é o... o...


"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga".  Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia.  Ou você pode dizer algo como: 


_Desculpe, deve ser a velhice, mas...


Este também é um apelo à piedade.  Significa " Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!".  É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.


E há um terceiro caminho.  O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína.  E o que, naturalmente, você escolhe.


_Claro que estou lembrando de você!


Você não quer magoá-lo, é isso!  Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outos está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer.  E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar.  Você pulou no abismo.  Você ainda arremata:


_Há quanto tempo!


Agora tudo dependerá da reação dele.  Se for um calhorda, ele o desafiará.


_Então me diga quem sou.


Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente desacordado, que  a ambulância venha salvá-lo.  Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:


_Pois é.


Ou:


_Bota tempo nisso.


Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória.  Quem será esse cara?  Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.


_Como cê tem passado?


_Bem, bem.


_Parece mentira.


_Puxa.


(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara?)


Ele está falando:


_Pensei que você não fosse me reconhecer...


_O que é isso?!


_Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.


_E eu ia esquecer de você. Logo de você?


_As pessoas mudam. Sei lá.


_ Que idéia.  (é o Ademar! Não, o Ademar já morreu.  Você foi ao enterro dele.  O... o... como era o nome dele?  Tinha uma perna mecânica.  Resende!  Mas como saber se ele tem uma perna mecânica?  Você pode chutá-lo amigavelmente.  E se chutar a perna boa?  Chuta as duas.  "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna.  "Que saudade" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)


_É incrível como a gente perde o contato.


_É mesmo.


Uma tentativa.  É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.


_Cê tem visto alguém da velha turma?


_Só o Pontes.


_Velho Pontes!  (Pontes.  Você conhece algum Pontes?  Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar.  Uma segunda ficha para localizar no sótão.  Pontes, Pontes...)


_Lembra do Croarê?


_Claro!


_Esse também eu encontro, às vezes, no tiro ao alvo.


_Velho Croarê.  (Croarê.  Tiro ao alvo.  Você não conhece nenhum Croarê e não fez tiro ao alvo.  É inútil.  As pistas não estão ajudando.  Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo.  Um lance de desespero.  O último, antes de apelar para o enfarte. )


_Rezende...


_Quem?


Não é ele.  Pelo menos isto está esclarecido.


_Não tinha um resende na turma/


_Não me lembro.


_Devo estar confundindo.


Silêncio.  Você sente que está prestes a ser desmascarado.


Ele fala:


_Sabe que a Ritinha casou?


_Não.


_Casou?


_Com quem?


_Acho que você não conheceu.  O Bituca.  (Você abandonou todos os escrúpulos.  Ao diabo com a cautela.  Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrazador.  Você está tomado por uma espécie de euforia terminal.  De delírio ao abismo.  Como que não conhece o Bituca? )


_Claro que conheci.  Velho Bituca...


_Pois casaram.


É a sua chance.  É a saída.  Você passou ao ataque.


E não avisou nada?


_Bem...


_Não.  Espera um pouquinho.  Todas essas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?


_É que a gente perdeu o contato e...


_Mas meu nome tá na lista meu querido.  Era só dar um telefonema.  Mandar um convite.


_É...


_ E você acha que ainda não vou reconhecer você.  Vocês é que se esqueceram de mim.


_Desculpe Edgar.  É que...


_Não desculpo não.  Você tem razão.  As pessoas mudam.  ( Edgar.  Ele chamou você de Edgar.  Você não se chama Edgar.  Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é.  O melhor é acabar logo com isto.  Aproveitar que ele está na defensiva.  Olhar o relógio e fazer cara de "já?!". )


_Tenho que ir.  Olha, foi bom ver você, viu?


_Certo, Edgar.  E desculpe, heim?


_O que é isso?  Precisamos nos ver mais seguido.


_Isso.


_Reunir a velha turma.


_Certo.


_E olha, quando falar com a Ritinha e o Manuca...


_Bituca.


_E o Bituca.  Diz que eu mandei um beijo.  Tchau, heim?


_Tchau, Edgar!


Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar".  Mas jura que é a última vez que fará isso.  Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?"  não dirá nem não.  Sairá correndo.


 


(Texto extraído do livro "As Mentiras Que Os Homens Contam"  Editora Objetiva - Rio de Janeiro - 2001, pág. 13.


 

23 comentários:

  1. Fantástico! Isto acontece sempre comigo, sempre encontro alguém que sei que conheço de algum lugar mas o lugar não vem e muito menos o nome da pessoa. E o pior é que tenho a mesma cara, ao que parece, porque todo mundo lembra de mim e me chamam pelo meu nome, eu me sinto horrível..................

    bjks!
    Déa

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  2. LF Veríssimo é campeão!
    Muito boa, Tânia!

    Um beijo,
    Marco.

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  3. Nisso eu sou o campeão! Eu não lembro o nome de ninguém, mesmo as pessoas recentes! É muito constrangedor. Mas estou treinando. Uma técnica é sempre que se dirigir a alguem falar o nome dela. Fulano, que horas são? Fulano, como está voce? Eu melhorei um pouquinho ultimamente mas mesmo assim ainda sou um desastre.

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  4. Já pareci muito pouco sensível, quando a amizade era de infância...
    Já saí duma dessas assim: _Puxa vida me esqueci dela....

    Legal você ter gostado Déa!
    Bjus!
    Tânia Regina.

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  5. Eu TINHA certeza de que você gostaria Marco!
    Beijo também!
    Tânia Regina.

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  6. Edu, meu nome é Tânia, heim?

    Que situação!
    É muito desconfortante.
    Essa é do Veríssimo mesmo não é Edu?
    Bjo!
    Tânia Regina.

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  7. Eu não sei mas se não for está muito bem escrita e com a cara dele. Eu arriscaria dizer que é sim....

    "Procura, freneticamente, em todas fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado."

    Isso é bem dele....

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  8. Essa crônica é mesmo muito boa. Não sou lá muito boa de guardar nomes, mais feio que as vezes simplesmente não registro uma pessoa, sento perto, converso coisa e tal, se encontro meses depois só com uns trancos, limpeza de cache, anti-vírus e afins que o meu hd funciona. Isso é muito chato, não gosto quando acontece. Agora se esqueço o nome pergunto na lata e me desculpo.

    Boa semana pra você Vânia!!!!

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  9. Ah Edu essa é de um livro dele - fonte segura!

    Há dois anos atrás, recebi uma visita de um ex colega. Eu o conheci com 18 anos, na minha primeira Faculdade... ficamos 2 horas conversando e eu não me lembrava dele.

    Quando ele foi embora, peguei uma foto antiga e quase morri!... Era ele, com cara de bebê. Havia mudado radicalmente! Fiquei com uma "vergonha" atrasada.

    Pior é que esta situação vive se repetindo com outros...

    Bye!

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  10. Tá bom Selma!!!!

    Boa Semana prá você também!

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  11. Edu,
    Há dois anos, fiquei 2 horas conversando com um colega de escola. Eu o conheci quando fazia minha primeira faculdade, tinha 18 anos. Nessas 2 horas não consegui saber de quem se tratava.

    Quando ele foi embora, peguei uma foto antiga, lá estava ele. Totalmente diferente, cara de bebê.... Como havia mudado.

    Senti uma "baita" vegonha atrasada.

    Pior é que isso volta e meia me acontece...

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  12. Parece aquela história:

    - Doutor estou com problemas de memória..
    - A quanto tempo?
    - A quanto tempo o que?

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  13. Do que você está falando Edu?
    Que estávamos conversando mesmo?
    Peraí, você é o Edu né?

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  14. mmmm....desculpe ...eu me engasguei....tinha comida na minha boca...eu não lembro de ter colocado!

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  15. Se continuarmos assim seremos internados!!! Rsrsrsrsrsrsrsrs.

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  16. Isso é bom mesmo???
    Fitoterápico?
    Tânia Regina.

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  17. Nunca tomei, mas olha o que dizem:
    Ginkgo Biloba é um dos fitoterápicos mais populares em todo o mundo e essa planta já era usado pela medicina chinesa há mais de 4 mil anos. O Ginkgo Biloba têm substâncias ativas capazes de melhorar a insuficiência vascular cerebral e periférica e é usado para auxílio ao tratamento de distúrbios de memória e concentração, vertigens, zunido no ouvido e labirintite. Além disso, o Ginkgo Biloba contém poderosos antioxidantes.

    Estudos pré-clínicos e clínicos realizados com o extrato de Ginkgo Biloba verificaram atividades farmacológicas significativas. O extrato total da planta tem ação farmacológica maior que seus componentes fitoquímicos isolados, o que indica sinergismo entre seus vários componentes.

    Todos os medicamentos, inclusive os fitoterápicos, devem ser usados com orientação médica.

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  18. Ual! Que menina sabida!
    É ainda por cima ...Canta!
    Bjo!

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  19. Olá, Tânia!!
    É Tânia mesmo.... neh???!!! ... rsrsss...
    Nossaaaa..... eu nem sei com o que me diverti mais, se foi com a crônica em si ou se com a seqüência de replyes que estão daqui pra cima.... muito bom... Uma ótima semana pra você.
    Um grande Abraço!
    Clair

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  20. Oi Clair!
    Que bom que você veio e se divertiu.
    Isso aqui está ficando cada vez melhor.
    Você precisa ver quando nos encontramos nas páginas uns dos outros, ficamos "filosofando"a madugada inteira se deixar.
    E agora com esse negócio de "ser cantor" rsrsrsrsrsrsrs. Todo mundo gravando...
    Beijo!
    Tânia Regina.

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  21. Ah...sempre, sempre acontece comigo! Já vou logo dizendo: minha memória não anda funcionando bem. :-)
    Bom dia, Tânia! Vejo que está online.

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  22. Bom dia Arlete! Estou realizando uns "trabalhinhos" de pesquisa.

    Eu também, já falo logo prá coisa não piorar.
    O pior é que a pessoa fica tentando fazer você se lembrar e você não consegue...
    Situação difícil!

    Um beijo!
    Tânia Regina.

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