sábado, 30 de setembro de 2006

"A Imaginação" - Jean-Paul Sartre

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"A Imaginação" Jean-Paul Sartre


Olho esta folha branca posta sobre minha mesa; percebo sua forma, sua cor, sua posição. Essas diferentes qualidades têm características comuns: em primeiro lugar, elas se dão a meu olhar como existências que apenas posso constatar e cujo ser não depende de forma alguma do meu capricho. Elas são para mim, não são eu. Mas também não são outrem, isto é, não dependem de nenhuma espontaneidade, nem da minha, nem da de outra consciência.

São, ao mesmo tempo, presentes e inertes. Essa inércia do conteúdo sensível, freqüentemente descrita, é a existência em si. De nada serve discutir se esta folha se reduz a um conjunto de representações ou se é ou deve ser mais do que isso. O certo é que o branco que constato não pode ser produzido por minha espontaneidade. Esta forma inerte, que está aquém de todas as espontaneidades conscientes, que devemos observar, conhecer pouco a pouco, é o que chamamos uma coisa.

Em hipótese alguma minha consciência seria capaz de ser uma coisa, porque seu modo de ser em si é precisamente um ser para si. Existir, para ela, é ter consciência de sua existência. Ela aparece como uma pura espontaneidade em face do mundo das coisas que é pura inércia. Podemos, pois, colocar desde a origem dois tipos de existência: é, com efeito, na medida em que são inertes que as coisas escapam ao domínio da consciência; é sua inércia que as salvaguarda e que conserva sua autonomia.

Mas eis que agora desvio a cabeça. Não vejo mais a folha de papel. Agora vejo o papel cinzento da parede. A folha não está mais presente, não está mais aí. Sei, entretanto, muito bem, que ela não se aniquilou: sua inércia a preserva disso. Ela cessou, simplesmente, de ser para mim. No entanto, ei-la de novo. Não virei a cabeça, meu olhar continua dirigido para o papel cinzento; nada se mexeu no quarto.

Entretanto, a folha me aparece de novo com sua forma, sua cor e sua posição; e sei muito bem, no momento em que ela me aparece, que é precisamente a folha que eu via há pouco. É ela, verdadeiramente, em pessoa? Sim e não. Afirmo, sem dúvida, que é a mesma folha com as mesmas qualidades. Mas não ignoro que esta folha ficou lá no seu lugar; sei que não desfruto de sua presença; se quero vê-Ia realmente é preciso que me volte para minha escrivaninha, que concentre meus olhares sobre o mata-borrão em que a folha está colocada.

A folha que me aparece neste momento tem uma identidade de essência com a folha que eu via há pouco. E, por essência, não entendo somente a estrutura, mas, ainda, a individualidade mesma. Essa identidade de essência, porém, não está acompanhada por uma identidade de existência.

É bem a mesma folha, a folha que está presentemente sobre minha escrivaninha, mas ela existe de outro modo. Eu não a vejo, ela não se impõe como um limite à minha espontaneidade; tampouco é um inerte existindo em si.

Em uma palavra, ela não existe de fato, existe em imagem.





Do Prefácio de "A Imaginação", de Jean-Paul Sartre.





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