sexta-feira, 7 de abril de 2006

LIXO - CRÔNICA DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Rating:★★★★★
Category:Other
Na foto ao lado, Veríssimo tocando seu sax!






"LIXO"




Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

_ Bom dia...

_Bom dia.

_ A senhora é do 610.

_ E o senhor é do 612.

_ É.

_ Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

_ Pois é...

_ Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

_ O meu quê?

_ O seu lixo.

_ Ah...

_ Reparei que nunca é muito. Sua família deve se pequena...

_ Na verdade sou só eu.

_ Mmmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.

_ É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

_ Entendo.

_ A senhora também...

_ Me chame de você

_ Você também perdoe a minha indiscrição, mas também tenho visto alguns restos de comida em seu lixo, champignons, coisas assim...

_ É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...

_ A senhora... Você não tem família.

_ Tenho , mas não aqui.

_ No Espírito Santo.

_ Como é que você sabe?

_ Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito santo.

_ É. Mamãe escreve todas as semanas.

_ Ela é professora?

_ Isso é incrível? Como foi que você adivinhou?

_ Pela letra no envelope. Achei que fosse letra de professora.

_ O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

_ Pois é...

_ No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.

_ É.

_ Más notícias?

_ Meu pai. Morreu.

_ Sinto muito.

_ Ele já estava bem velhinho. Lá no sul. Há tempos não nos víamos.

_ Foi por isso que você começou a fumar?

_ Como é que você sabe?

_ De um dia para o outro começaram a aparecera catreiras de cigarros amassadas no seu lixo.

_ É verdade. Mas consegui parar outra vez.

_ Eu, nunca fumei.

_ Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo...

_ Tranqüilizantes. foi uma fase. Já passou.

_ Você brigou com o namorado, certo?

_ Isso você também descobriu no lixo?

_ Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

_ É, chorei bastante, mas já passou.

_ Mas hoje ainda têm uns lencinhos...

_ É que estou comum pouco de coriza.

_ Ah.

_ Vejo muitas revistas de palavras cruzadas no seu lixo.

_ É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

_ Namorada?

_ Não.

_ Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

_ Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

_ Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

_ Você já está analizando o meu lixo!

_ Não posso negar que o seu lixo me interessou.

_ Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

_ Não! Você viu meus poemas?

_ Vi e gostei muito.

_ Mas são muito ruins!

_ Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. eles só estavam dobrados.

_ Se eu soubese que você ia ler...

_ Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

_ Acho que não. Lixo é domínio público.

_ Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra da vida dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

_ Bom, aí você está indo longe demais no lixo. Acho que...

_ Ontem no seu lixo...

_ O quê?

_ Me enganei, ou éram cascas de camarão?

_ Acertou. Comprei alguns camarões graúdos e descasquei.

_ Eu adoro camarão.

_ Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...

_ Jantar juntos?

_ É.

_ Não quero dar trabalho.

_ Trabalho nenhum.

_ Vai sujar a sua cozinha.

_ Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

_ No seu lixo ou no meu?




(Extraído de "O Analista de Bagé")





11 comentários:

  1. Adoro Luis Fernando Veríssimo!
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Realmente! Tenho outras crônicas dele no Blog (journal), faz algum tempo que postei.
    Bjo.

    ResponderExcluir
  3. Posso te adicionar no multiply, é difícil de te achar?

    ResponderExcluir
  4. Claro! Eu não posso mais pedir add! Já passei dos 150 e o múltiply não permite. Mas você pedindo não têm problema, é aceito.

    ResponderExcluir
  5. Muito boa essa crônica,
    conhecia não,

    As vezes fico chateado por que sempre recebo emails com crônicas,
    Dizendo passar por ele ou outros escritores, você acaba lendo muita porcaria, até que tem textos bons, mas seus autores preferem o anonimato
    por isso,
    Achei bacana você citar a fonte

    ResponderExcluir
  6. Tenho um contato virtual - o Edu - ele me ajuda sempre quando preciso saber se a crônica é do Veríssimo ou não.
    Agora já estou mais "espertinha". Tenho uns sites seguros - retiro dos próprios livros, não tem como errar.
    Vai no meu blog. Lá tem outras legais do Veríssimo - autênticas!

    ResponderExcluir
  7. gostei muito mas nao me ajudou no trabalho :( mas tudo bem valeu a pena ter lido ela pabens!!!

    ResponderExcluir